terça-feira, 6 de abril de 2010

Grito-terapia

Depois do feito atípico do domingo, o rapaz se despediu dos amigos alegando cansaço. Uma mentira sincera. Não pretendia contar a ninguém seu próximo destino. Iria ao único lugar conhecido em que todos os gritos poderiam rasgar o céu. Era o lugar mágico de sua cidade. Poucos sabiam da existência de tal lugar.

A visita ao lugar mágico tinha um objetivo concreto. Só faltava a coragem para executar-lo. Estacionou seu carro e atravessou a rua. Aquela pista, tempos atrás era um ponto de freqüentes corridas ilegais. Fiscalizações eletrônicas alteraram a ordem das coisas.

O rapaz chegou onde queria. Sentia medo. A noite era fria. Estava só. A adrenalina subiu em seu sangue. Confundia pingos de chuva com passos assustadores. Mas ele não podia ir embora. Estava lá por um simples motivo: se permitir. Porque no fundo ele sabia, se permitir era, antes de tudo, aceitar seu medo infantil. O feito notável de horas atrás ainda passava pela sua cabeça. Não conseguia se concentrar no verdadeiro motivo para sua vinda a aquele lugar.

Observava em volta a noite vazia. Aos poucos se acostumava com a sensação do medo. Ouviu vozes distantes. Visualizou dois vultos aproximadamente a um quilometro dali. Provavelmente um casal apaixonado, buscando sentir a magia daquele lugar. Sentiu-se despreocupado. O casal o deixava ainda mais sozinho. Porem, não havia coragem. Um filme dos últimos meses passava pela sua cabeça. Os intensos altos e baixos o atormentavam. O rapaz fechou os olhos e encheu seus pulmões de ar. Por um momento esqueceu a realidade. Estava concentrado apenas no que veio fazer ali.

Poderia haver alguém o observando. O publico não enxergaria nada que fizesse sentido. Porque haveria um rapaz ali em pé, respirando tão intensamente? Porque ele está de cabeça baixa? Porque ele está tão estático?

E o homem sentiu que não poderia mais adiar aquele momento. Seu corpo não reagia. Ele precisava começar de qualquer jeito. Sem perceber, todo o ar contido em seus pulmões foi liberado subitamente de seu corpo em forma de grito. O grito durou menos do que planejara.

Por um breve momento caminhou em direção ao carro. Mas não podia voltar, ainda não estava satisfeito. Concentrou-se de novo. Soltou o segundo grito. Ainda de curta duração. Conseguiu sentir a sensação de liberdade. Seguiu a empolgação do momento. No terceiro grito sentiu sua garganta doer. Estava imune a dor. No quarto grito, sentiu as vibrações sonoras atravessarem seus tímpanos, chegando ao cérebro. Sentiu-se livre. Precisava daquilo a muito tempo. Porque cometer loucuras também é parte do aprendizado. Porque gritar sem motivos, pode ser sinônimo de sensatez. Depende da onde se quer chegar.

Precisava voltar a realidade. Essa é a diferença entre o artista e o louco. O artista volta para a realidade. Era um artista, estava de volta ao real. Caminhou lentamente em direção ao seu carro. Foi para casa e dormiu.

No dia seguinte se portou melhor diante daquilo que o chateava. Ainda não chegou ao nível ideal. Mas sentiu uma evolução. Então decidiu. Iria começar com seções mensais de grito-terapia no único lugar do mundo onde conseguiria rasgar o céu. E assim, aos poucos, o problema citado no post passado será solucionado. E a arte continuará a fazer sentido em sua vida.

Obrigado pela leitura!

6 comentários:

  1. Maravilhoso o texto, tem o poder de transportar quem lê para a posição do narrador!

    Talvez eu seja mais suscetível a isso por gostar dessas sessões de grito terapia ;D

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  2. as leituras daqui, sempre intensas e empaticas (existe essa palavra!? algo que te faça sentir empatia?! ahh, deve existir... rs).

    Preciso achar algo que me faça me libertar, me sentir livre das obrigações chatas do dia a dia ou de outras coisas... :)

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  3. Velha conhecida essa terapia... mas eu faço dentro do carro fechado... rs

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  4. por favor!!! a dias que eu penso que uma loucura pode me salvar. de mim mesma. mas.. qual??? o que???

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  5. Sinto em seus textos uma doçura e poesia que via nos meus há tempos atrás... agora, a realidade me consome e por isso, mudei as escritas. Acho que sou amiga de uma pessoa que vc conhece, que tinha um blog e não escreve mais. Nela tb vi a poesia se perder. Por favor, não se perca tb.

    Bjos e muito Fernando Pessoa pra vc. Tenta ler, acho que vai gostar. E tb estou te seguindo. Vou divulgar seu blog no meu twitter. Se quiser, divulge o meu tb.

    Até a próxima!

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  6. Gostei do texto.... às vezes me sinto com vontade de gritar, independente de ter pessoas perto ou não, como se fosse me libertar de um peso, ou me sentir satisfeita.

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