quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O estagiário, o leitor e o cabelo.

Era quase meio dia. E aquele simples estagiário terminava de examinar o paciente. Estava atrasado como (quase) sempre. Tentou ser o mais atencioso possível apesar da pressa. Fazia parte da sua conduta. Quando ia embora, foi abordado pelo paciente do lado.
-Doutor!
Já havia se acostumado com tal titulo. Vestir jaleco em um hospital e apresentar uma boa capacidade de se comunicar valia o doutorado por osmose. Bendita(leia-se maldita, talvez) seja essa imagem passada para sociedade. O paciente que o chamava era bastante jovem, poderia ter a sua idade. Estava com a voz baixa, parecendo deprimido. Era como se chamar o “médico” fosse motivo de algum constrangimento...
-Pois não!
-É que eu vou receber alta amanha...mas é que meu cabelo tá caindo...e eu queria cortar ele porque tá muito feio... Perguntei para enfermeira, ela pediu para eu falar com um médico.
-Olha, eu sou só estudante...mas com que enfermeira vc falou? (Nesse momento a insegurança bateu. Será que havia alguma contra indicação de raspar a cabeça para pacientes com câncer?)
-Com aquela que aplica a medicação...
Mistério solucionado. O Paciente havia perguntado para uma técnica de enfermagem, não uma enfermeira. Essa categoria não possui o diploma de ensino superior, o que não retira sua importância e competência dentro dos hospitais. Provavelmente perguntou para alguém novo no setor, que não queria se responsabilizar por nada de errado. Sensato da parte dela passar a bola para o médico.
Ele demorou muito pouco tempo para pensar em tudo isso. As vezes se impressionava com sua rápida capacidade de fazer suposições. E naquele determinado momento, se sentiu estupidamente inseguro de apresentar uma resposta pronta.
-Vou só dar uma conferida...mas acho que não há nenhuma contra-indicação...
-É porque como eu vou ter alta meu cabelo tá caindo muito. –Nessa hora o paciente retirou a toca e mostrou como estava sua cabeça.- e sair assim na rua é muito feio...

O paciente se mostrava preocupado com sua aparência. Parecia estar bem triste de mostrar a cabeça, como se aquilo fosse um apelo. Repetira a mesma informação duas vezes em um curto espaço de tempo. Era um apelo. Eles continuaram a conversar, principalmente sobre o motivo da internação. O estagiário observou um livro em cima da cama do paciente. Já havia folheado aquele livro antes em uma livraria. Despertara sua curiosidade na época.
-E que livro vc tá lendo? Ele é bom? Eu quase o comprei uma vez!
-Pouxa cara, é muito bom! Já li quase 600 paginas só nesses dias que estava aqui...to gostando demais!

A atitude do paciente mudou. Esboçou um sorriso. Se pareceu mais disposto a pegar o livro e mostrar ao estagiário. Ao foliar aquele livro pela segunda vez, ele ressaltou como um meio de entretenimento para quem estava lá. De repente notava que todos pacientes e acompanhantes do quarto observavam a conversa de ambos. Conquistara a simpatia de todos daquele quarto, quase sem querer. Mas precisava voltar a realidade. Ainda havia trabalho a fazer. Se despediu de todos e saiu do quarto educadamente. Encontrou uma de suas chefes enfermeira. Não poderia deixar de perguntar...aquela resposta valia muito.

-Não há problema nenhum em um paciente com câncer raspar a cabeça...
Para perguntas idiotas, não há tolerância. Optara por ser um idiota sensato a um arrogante inseguro. Sabia decisão.
Voltou ao quarto. Lembrou que estava com a barba grande. “Uns com tantos, outros com tão pouco.” A frase também vale para o cabelo. Chamou o leitor pelo seu nome.
-Me faz um favor? Me indica o lugar onde você for cortar o cabelo! É que eu preciso tirar minha barba.

A leitura aumenta nosso poder de interpretação. E para um bom entendedor, meia palavra basta. A felicidade de poder raspar o cabelo estava explicita nos olhos do paciente. E a forma como isso foi passado para ele, humildemente falando, deu um brilho especial a situação. Era um riso alegre. Meio engasgado, mas alegre. Como estivesse rindo após muito tempo. E para o estagiário, era um tipo de realização profissional. Vindo logo aquele estagiário que não queria estar naquele hospital. Vindo logo aquele estagiário que não queria estar naquele andar.
“O esquema não é escolher o que gosta. É gostar do que está fazendo. E assim nos permitimos aprender e viver momentos especiais”.
Obrigado pela leitura.